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July 2019 in Ultima década
Práticas discursivas e sociais relativas aos jovens e à juventude
Resumo:
Neste artigo, buscamos problematizar alguns discursos sociais dirigidos aos sujeitos juvenis e à juventude enquanto categoria social, a partir do embasamento de discussões importantes trazidas por pesquisadores latino-americanos sobre este campo. Destacamos o papel ocupado por estes discursos que, mesmo que em permanente tensão com as perspectivas e vivências espaço-temporais dos próprios jovens, constituem condições de subjetivação dos mesmos, já que, muitas vezes, encontram-se subjacentes na forma como estes se veem, falam sobre si e significam suas ações e seu ser no mundo. Consideramos que tais discursos também podem influenciar na elaboração de políticas públicas e ações dirigidas aos jovens.
1. Introdução
O conceito teórico e sociocultural de juventude nem sempre existiu. Trata-se de um conceito que «nasceu» na sociedade moderna ocidental e desenvolveu-se com mais intensidade no século XX. A complexificação das tarefas de produção e a sofisticação das relações sociais trazidas pela sociedade industrial passaram a exigir um tempo a mais de preparação dos indivíduos, que pode ser considerado uma segunda socialização. Esta preparação começou a ser realizada em instituições especializadas, principalmente as escolas, o que implicava no adiamento da entrada no mundo produtivo e da permissão para a reprodução e a participação (Abramo, 2005).
No Brasil, até em torno dos anos 60, a visibilidade da juventude se restringia a jovens escolarizados de classe média, o que condensava o significado da condição juvenil. Nos últimos 40 anos do século XX, crianças e adolescentes em situação de risco tornaram-se foco das preocupações e mobilizações em torno da defesa de seus direitos. Mais recentemente, há aproximadamente 20 anos, a juventude, para além da adolescência em situação de risco e da juventude de classe média, começou a ser foco de atenção. No entanto, ocorre que até hoje as vivências dos jovens burgueses, que constituíram a noção moderna de juventude, funcionam como padrão ideal (Abramo, 2005).
É inegável a dificuldade de se obter um conceito unívoco de juventude. Trata-se de uma noção que possui uma complexidade, que demanda que seja abordada desde uma perspectiva transdisciplinar. Atualmente, é possível observar que pesquisadores de diversas áreas do conhecimento vêm se debruçado sobre questões que envolvem a juventude, contribuindo para a constituição deste campo.
Tanto a Sociologia quanto a Psicologia contribuíram no desenvolvimento de estudos, através de suas diversas linhas teóricas. Enquanto que a ênfase teórico-conceitual da Sociologia foi a tematização da juventude, através das teorias sobre a sociedade e sua dinâmica constitutiva a partir das gerações, a Psicologia e a Psicanálise enfatizaram a tematização da constituição das subjetividades juvenis e a especificidade do juvenil enquanto aspecto constitutivo da subjetividade (Castro, 2019).
A Psicologia tem trabalhado predominantemente com o conceito de adolescência para falar sobre algumas questões da juventude. A publicação da obra «Adolescence», de Stanley Hall (1904), é considerada um marco do início dos estudos científicos e acadêmicos sobre a adolescência. Trata-se de uma obra extensa e ampla, que trata de uma variedade de tópicos, tais como o crescimento corporal, sexualidade, desenvolvimento cognitivo e psicopatologia. A partir de então, o processo adolescente passou a ocupar um lugar significativo nas discussões do campo da Psicologia e da Psicanálise, sendo considerada uma função estruturante do sujeito moderno, que se depara neste momento com experiências, sobretudo as que dizem respeito às transformações corporais da puberdade, que o convocam a um reposicionamento em relação a si mesmo, aos vínculos familiares e à relação com a sociedade.
Neste sentido, Ruffino (2004), a partir de um referencial psicanalítico, refere que a adolescência é entendida como um trabalho psíquico do sujeito moderno ocidental, que se faz necessário para processar a passagem da infância para a adultez, diante da ausência de dispositivos que cumpram a função que outrora era exercida pelos rituais, que ofereciam referenciais coletivos, os quais operavam como organizadores deste processo.
Apesar de alguns autores discutirem as noções de adolescência e juventude de modo intercambiável, destacamos a importância de demarcarmos como estamos compreendendo cada um destes dois conceitos, antes de tomarmos a noção de juventude como foco principal do presente trabalho.
Em relação ao conceito de juventude, este não possui uma definição única, nem estática, pois trata-se de uma categoria com marcos variáveis de acordo com cada sociedade e, em cada momento histórico, cada geração traz marcas próprias dentro do seu contexto social (Raitz & Petters, 2008). É muito complexo afirmar o que é o específico do juvenil, ou seja, o que diferencia a subjetividade juvenil de outras formas de subjetividade.
Em relação à delimitação da especificidade da juventude, referimos Bourdieu (1983), que propõe uma perspectiva relacional entre as gerações -perspectiva com a qual este trabalho se alinha-, considerando que a fronteira entre juventude e velhice se constitui em um objeto de disputas e embates intergeracionais, uma vez que a divisão das etapas da vida trata de uma «repartição de poderes». Ou seja, a juventude, assim como a velhice não são dados, mas construídos socialmente a partir dos embates e tensões presentes nas relações intergeracionais. Consideramos, então, a juventude enquanto uma categoria que se constrói no jogo de forças sociais dos diferentes grupos das sociedades.
A fim de se compreender e descrever a heterogeneidade e as especificidades das juventudes, é necessário considerar quatro variáveis que marcam profundamente sua realidade: o gênero, a escolaridade, o status socioeconômico e o local de origem. Em relação ao gênero, destaca-se que uma conceitualização da juventude deve incluir os confrontos e as possíveis resistências ou desvios em relação ao que a sociedade compreende como trajetória ideal para os homens, que se diferencia da trajetória indicada para as mulheres. A escolaridade é uma variável que marca diferenças, principalmente em relação à exclusão ou inclusão em determinados âmbitos, entre grupos de jovens, mesmo quando estes pertencem a um mesmo meio social. Além disso, é preciso considerar o contexto escolar dos jovens na compreensão da estrutura de emprego que se oferece a eles e sua participação política. O local de moradia, particularmente a localização rural ou urbana, também é uma dimensão que deve ser levada em consideração, sobretudo em pesquisas, pois marca profundamente as vivências do jovem. A classe social ou nível socioeconômico deve ser considerado não somente a partir da perspectiva de acesso material aos recursos, mas também a partir da cultura parental que pode configurar desde muito cedo imagens e expectativas em relação ao mundo (Urbieta, 2003). Além destas variáveis, podemos considerar a nacionalidade, a etnia, a raça, a religião e o momento histórico como categorias sociais e condicionantes históricos que devem ser cruzados com a categoria social juventude a fim de se analisar as juventudes concretas (Groppo, 2004).
Assim, considerando que as representações sobre a juventude, o lugar que esta ocupa na sociedade e o tratamento que a sociedade lhe confere ganham contornos específicos em contextos históricos, sociais e culturais diferentes, a noção de juventudes, no plural, é utilizada por vários autores latino-americanos para ressaltar a diversidade de formas existentes de vivenciá-la (Malfitano, 2011; Margulis & Urresti, 1998, 2008; Quapper, 2012; Raitz & Petters, 2008; Soares, 2000; Takeuti, 2012; Zucchetti & Bergamaschi, 2007). No entanto, cabe salientar que o uso do termo no plural não significa necessariamente que esta diversidade estejam de fato sendo consideradas nas intervenções, investigações e reflexões teóricas, uma vez que o uso da palavra no plural por vezes pode se constituir em um mero modismo, sendo equivocadamente utilizado. Também podemos considerar que o próprio termo «juventude» já prevê certa diversidade, ou seja, o uso no singular não implica que a categoria não abarque as várias situações de grupos juvenis que a vivem de forma diferente.
A pluralidade de modos de ser jovem existente demanda que os estudos se realizem levando-se em consideração esta diversidade. No entanto, destaca-se a existência de discursos sociais sobre os jovens e a juventude que ressaltam e valorizam alguns aspectos em detrimento de outros, como se estes aspectos constituíssem aquilo que daria conta do juvenil. Tais discursos também podem ser bastante contraditórios, tendo em mira determinado tipo de jovens, e por vezes baseiam-se em perspectivas homogeneizadoras e estereótipos do que é ser um jovem ideal, o que geralmente corresponde às características dos jovens de classe média e alta (Abramo, 2005; Dayrell & Carrano, 2002). Estes discursos sociais sobre os jovens e a juventude podem partir do «senso comum», mas por vezes se apoiam em representações que foram produzidas pelo próprio pensamento acadêmico e que são propagadas pelos meios de comunicação, por atores políticos, agentes culturais e trabalhadores sociais.
Neste artigo, buscamos problematizar alguns discursos sociais sobre os jovens e a juventude, dentre os quais podemos destacar: 1) a juventude como ideal de vida; 2) a juventude entendida como um momento de crise; 3) a juventude enquanto problema social; 4) a associação entre juventude e futuro; e 5) a juventude como moratória social. Apresentar estes discursos sociais tem como objetivo identificar, caracterizar e compreender que saberes e representações sobre este campo vêm sendo produzidos e acomodados no tecido social. E, a partir daí, questionar certas visões tomadas como naturais e buscar, a partir das vozes e vivências dos próprios jovens, o que converge com e o que diverge dos discursos produzidos sobre eles. Além disso, salientamos o papel que tais discursos assumem como parte dos modos de subjetivação/produção de si dos sujeitos juvenis. Faz-se necessário considerar também que tais discursos não são atribuídos a todos os jovens da mesma maneira e que alguns têm seus destinatários privilegiados, ou seja, referem-se a jovens de determinados grupos sociais.
Os discursos sociais serão apresentados a seguir separadamente, mas na realidade das relações sociais geralmente aparecem de forma combinada, articulada ou imbricada. Foram elencados cinco tipos de discursos, que não representam a totalidade, mas foram abordados por considerarmos relevantes para a discussão acerca da juventude latino-americana atual, sobretudo no que se refere à juventude de grupos populares.
2. Juventude como ideal de vida
Um dos discursos sobre a juventude existente na sociedade contemporânea é o que considera o ser jovem como ideal e referência principal para todas as faixas etárias, localizado no patamar de excelência em relação à beleza, potência, bem-estar, inteligência, liberdade e sensualidade (Pereira & Gurski, 2014; Takeuti, 2012). De acordo com esta visão, a juventude se constitui em um período de liberdade, desfrute, experimentação e prazer.
Além disso, em algumas sociedades, o jovem foi e tem sido considerado um modelo privilegiado de capacidade e de força, representando e promovendo, principalmente nas sociedades modernas, os ideais de desenvolvimento e progresso (Zucchetti & Bergamaschi, 2007). Enne (2010) destaca a associação da juventude com certo «espírito do tempo», relacionado às rupturas, ao novo, ao movimento, ao que não se conforma, à busca por experiências, renovação e mudanças, todos estes valores caros à modernidade. Desse modo, compreende-se a juventude, enquanto espírito do tempo, como signo vital do ser moderno.
Esta valorização da juventude também está ligada ao que Mannheim chamou de «reserva vital», ou seja, a juventude vista como agente revitalizador, que contém um potencial de melhora para o amanhã da sociedade, uma espécie de reserva (de recursos latentes que a sociedade pode mobilizar) que sai à superfície quando se deseja uma revitalização que sirva para adaptar-se rapidamente a circunstâncias novas ou modificadas. Assim, a vantagem que a juventude possuiria na sua contribuição à renovação social estaria ligada, além do fato de possuir um maior «espírito de aventura», ao fato de não estar completamente implicada no status quo da ordem social (Mannheim, 1944). Desse modo, esse discurso do ideal está relacionado à própria ideia do progresso, uma vez que as novas gerações passaram a carregar, na sociedade moderna, a missão de progredir, de ser melhores que as gerações anteriores.
Este discurso que confere visibilidade e valoriza o «ser jovem» também relaciona-se com o fato de que estes são consumidores em potencial. Trata-se de uma visão cristalizada a partir dos anos sessenta, resultado, entre outras coisas, do desenvolvimento da indústria cultural e de um mercado de consumo dirigido aos jovens, que tem como objetivo a manutenção da lógica cultural do capitalismo (Dayrell & Carrano, 2002; Margulis & Urresti, 1998). Neste sentido, foi se articulando um processo em que foram apropriadas características consideradas provenientes do mundo juvenil, como estilos de vida, consumos, gostos e preferências, imagens e vestimentas, e oferecidas a segmentos crescentes da população, como signos emblemáticos de modernização (Margulis & Urresti, 1998).
Essa cadeia de significantes em torno do ser jovem contribui para estruturar um estilo de vida jovem que se dissemina como ideal cultural, que convoca quem quer que seja a se incluir como protagonista (Castro, 2011). Neste sentido, o juvenil aparece como um valor simbólico associado a características apreciadas, principalmente pela estética dominante, o que permite que sejam comercializados seus atributos, ou signos exteriores, multiplicando a variedade de bens e serviços oferecidos, o que impacta diretamente sobre os discursos sociais que o aludem (Margulis & Urresti, 1998; 2008).
Assim, a partir da modernidade, os valores associados ao estilo de vida jovem passaram a ser consumidos como meta e desejo por diversos atores sociais, incluindo adultos e idosos, para quem o discurso midiático tende a estimular e cobrar uma eterna juventude, oferecendo instrumentos da cultura do consumo para que este objetivo seja atingido (Debert, 2010; Enne, 2010; Margulis & Urresti, 1998). Maria Rita Kehl afirma que hoje ocorre a passagem de uma juventude prolongada direto para a velhice, ficando vazio o espaço que deveria ser preenchido pelo adulto, fenômeno que ela chama de «teenagização» da cultura ocidental (Kehl, 2004; 2008). De forma semelhante, Pereira e Gurski (2014) falam da existência de «adultos adolescentizados», os quais não conseguem reconhecer sua experiência como passível de transmissão, desvalorizando o passado em nome de uma juventude eterna. Esse fenômeno acaba provocando um esvaziamento da experiência e da memória, o que pode gerar um desamparo nos jovens pela falta de referências a partir das quais o novo poderia ser construído.
A mesma cultura que enaltece a juventude e celebra o estilo de vida e o modo de ser juvenil é excludente em relação aos jovens, no que se refere às condições estruturais que os atingem de forma preferencial, tais como uma precária estrutura objetiva de oportunidades, a vitimização pela miséria, por guerras, por mortes violentas, e a moratória social em relação à possibilidade de participação e de tomada de decisões sobre os processos sociais nos quais estão inseridos (Castro & Correa, 2005). Desse modo, esta idealização do «ser jovem» é paradoxal quando observamos que a realidade concreta e objetiva que se apresenta à maioria dos jovens é marcada por limitações que restringem o campo de possibilidades de realização na vida profissional e social. Nota-se, assim, uma incompatibilidade entre estas representações idealizadas e a realidade de jovens de certos grupos sociais. Podemos considerar, por outro lado, que talvez muitos jovens «assimilem» e vivenciem esse discurso do ideal de alguma maneira, quando, por exemplo, dizem «aproveitar a juventude», como se este fosse o melhor tempo e como se esta guardasse tudo o que é bom e deve ser aproveitado.
Talvez poderíamos pensar que o que é enaltecido e valorizado pela sociedade ocidental contemporânea não é a juventude, mas o juvenil, ou seja, o que a essa categoria representa para a sociedade em termos de estilo de vida ou de um «modo de ser» identificado ao bem viver consumista (Debert, 2010; Groppo, 2004; Margulis & Urresti, 1998). Segundo Margulis e Urresti (1998), é possível ser juvenil sem ser jovem, mas nem todos os jovens são juvenis, no sentido de que não se enquadram no modelo de jovem que é apresentado como espelho do mercado de consumo pela publicidade: esse jovem que não experimenta angústias e desfruta das dinâmicas próprias desse momento da vida, sem incertezas e inseguranças. Nem todos os jovens possuem o corpo legítimo, o look juvenil, o acesso ao consumo valorizado e oneroso de vestimentas e outros signos corporais (Margulis & Urresti, 1998). Por outro lado, podemos considerar que o look juvenil nem sempre está estritamente ligado ao consumo valorizado e oneroso. Ele também pode ser produzido a partir de algo novo, diferente e ousado que o jovem produz que está ligado à sua capacidade de experimentar, como se essa ousadia fosse um atributo juvenil e coubesse melhor ao jovem.
Outra questão que tensiona o discurso ocidental da juventude como a etapa mais desejável da vida é o fato de que em algumas sociedades africanas, por exemplo, os jovens anseiam pelo depois deste período da vida, que irá dotá-los com uma autoridade e uma «existência social» que na atualidade lhes é negada. Esta perspectiva do ideal está muito ligada às análises da juventude no Norte, onde os jovens possuem uma gama mais ampla de escolhas possíveis e têm mais acesso aos recursos e à possibilidade de construir suas vidas por si próprios e, dessa forma, a juventude geralmente é vista como uma posição social positiva. Mas se mudarmos o foco para a análise da situação de jovens em áreas de pobreza e escassez, ser jovem, muitas vezes se torna uma posição de imaturidade social e política, mudando drasticamente o status de sua posição social. Assim, parece que o potencial e o status da agência da juventude encolhe enquanto nos movemos do Norte para o Sul, das áreas de abundância para áreas de escassez (Vigh, 2006).
3. Juventude como momento de crise
Outro discurso importante a ser destacado é o da juventude vista como um momento de crise, conflitos e desajustes, que supostamente serão resolvidos na adultidade (Urbieta, 2003), como uma etapa difícil, marcada por conflitos em relação à autoestima e à personalidade, ou ainda por certo distanciamento da família (Dayrell & Carrano, 2002). Por vezes, deparamo-nos com concepções de juventude que a reduzem a um estado marcado por rebeldia, agitação, paixão, incertezas, dentre outras características (Knauth & Gonçalves, 2006). Menandro, Trindade e Almeida (2003) realizaram um estudo sobre as representações sociais da adolescência/juventude em matérias jornalísticas publicadas em uma revista brasileira, nos períodos de 1968 a 1974 e de 1996 a 2002. Nos dois períodos estudados, foram identificadas, dentre outras, ideias de rebeldia, dependência e imaturidade associadas à adolescência/juventude e noções de que tal período seria, inerentemente, marcado por dificuldades de vários tipos.
Tais representações apontadas pelos estudos acima citados poderiam ser condensadas na noção de crise, designada como uma conjuntura ou momento difícil, decisivo ou perigoso. Crise pode também significar a falta de alguma coisa considerada importante, ou ainda a manifestação súbita de um estado emocional ou nervoso1. Assim, se a crise se refere à falta de algo, ao considerarmos o discurso da juventude como crise, parece estar implícita a ideia de que o que faltaria ao jovem seriam características consideradas adultas, como a maturidade, a racionalidade, o controle de impulsos e a estabilidade emocional. Ou seja, desde este ponto de vista, esta ideia se relaciona com uma perspectiva desenvolvimentista, que atribui determinadas características à infância, juventude e/ou adolescência, que serão superadas na adultidade.
Como contraponto a essa perspectiva, Ozella e Aguiar (2008), fundamentados na Psicologia Sócio-histórica, lançam a hipótese de que a ideia de crise como algo natural serve como instrumento para mascarar os reais motivos dos conflitos, «tornando a crise uma realidade em si mesma, que seria resolvida por meio de ações que conduziriam o sujeito à racionalidade interrompida. Assim a normalidade da crise banaliza os conflitos» (p. 104). Poderíamos inferir que esta «banalização dos conflitos» ocorre, por exemplo, quando determinados comportamentos do jovem são desvalorizados ou imediatamente rotulados como se fizessem parte do conjunto de manifestações críticas que compõe esse período da vida. Nesta colocação, também chamam atenção duas questões criticadas pelos autores: a ideia de uma racionalidade, que seria retomada na adultez; e a ideia de crise como natural à juventude, desconsiderando-se sua ocorrência em outros momentos da vida.
Knauth e Gonçalves (2006) colocam em questão a ideia de que a adultidade seria um período do ciclo vital em que haveria menos conflitos, ao passo que estes caracterizariam especialmente a juventude. Ao contrário, os autores defendem que não é possível afirmar que o conflito e todas as características mencionadas acima manifestem-se exclusivamente neste período, por ser o conflito algo que faz parte da vida, assim como não existe uma forma estática de viver nenhuma fase do ciclo vital (Knauth & Gonçalves, 2006).
A noção de crise foi trabalhada por vários teóricos da Psicologia do Desenvolvimento ao abordarem a adolescência, dentre os quais podemos citar Aberastury, Knobel e Erikson. De forma geral, eles referem a adolescência como momento de crise, rebeldia, transitoriedade, turbulência, tensão, ambiguidade e conflito (Aberastury & Knobel, 1981/2007). Tanto Aberastury quanto Knobel dão primazia aos elementos biológicos (sobretudo às mudanças corporais), como fatores desencadeadores da crise da adolescência e consideram que os processos sociais só viriam facilitar ou dificultar este processo (Campos, 2006).
Erikson (1972), em sua teoria psicossocial, vincula a adolescência com a formação da identidade e afirma que, neste período, o indivíduo vivencia o dilema «Identidade versus Confusão de identidade», em que existe uma crise a ser resolvida. Este autor procurou conciliar as dimensões biológicas e sociais (fatores presentes na cultura, como o maior tempo de escolarização e as novas exigências do mercado de trabalho), como fatores que interagem para que ocorra a crise de identidade do adolescente. Ele busca distanciar-se do estereótipo da crise como algo problemático, no sentido de uma «catástrofe iminente» (Campos, 2006), referindo-se a ela como um momento crucial de mudanças, em que é demandada dos adolescentes uma grande mobilização de recursos internos.
Neste sentido, destacamos o enfoque que potencializa a crise, no sentido de considerar como ela também pode possibilitar descobertas, transformações, (re)invenções e (re)construções importantes da subjetividade adolescente/jovem, mais do que significá-la como um momento de não-razão ou não adultez (Mayorga, 2006). Assim, dependendo da forma como olhamos para a crise, ela pode representar ameaça ou pode se percebida como um momento de desenvolvimento, capaz de produzir organização e construção subjetiva.
4. Juventude como problema social
Nos meios de comunicação de massa, observa-se, concomitantemente ao aumento de produtos especificamente direcionados aos jovens, um crescimento de noticiários sobre os problemas sociais que os envolvem. Podemos, assim, destacar o discurso da juventude como problema social, principalmente quando consideramos a realidade brasileira. É importante salientar que, diferentemente do discurso da crise, que geralmente se refere a conflitos, rebeldia e outras manifestações naturalizadas e esperadas que ocorram neste momento, a ideia de problema social relaciona-se ao que se desvia do que é esperado em termos de desenvolvimento social e individual para o jovem, tendo em vista como isso impacta negativamente e ameaça o que está instituído socialmente.
Abramo (1997) observa que quando atores políticos ou instituições elaboram ações dirigidas aos jovens relacionadas à cidadania, o foco geralmente se dirige aos problemas, privações e desvios. Desde esta perspectiva, que, de acordo com a autora, se baseia na sociologia funcionalista, a juventude é entendida como um processo de desenvolvimento social e individual de capacidades e adequação aos papéis adultos. Desse modo, a preocupação social recai sobre as falhas nesse desenvolvimento e ajuste, sobre as «infuncionalidades» e os «desvios», que devem ser tratados. Assim, o foco real de preocupação estaria na coesão moral e continuidade da sociedade e na integridade moral do jovem, pensado enquanto futuro membro da sociedade, integrado e funcional a ela (Abramo, 1997; Groppo, 2004; 2010).
A visão funcionalista da juventude, segundo Groppo (2004), baseada em teorias sociais behavioristas, no interacionismo simbólico e no funcionalismo propriamente dito, atravessou grande parte da produção sociológica sobre esta noção na primeira metade do século XX. Isso implica na ideia de que existem estados «normais», saudáveis, estabelecidos a partir de «leis sociais» positivamente compreensíveis, o que implica na existência de anormalidade, de doença e daquilo que foge do esperado e não permite o adequado funcionamento do sistema social (Groppo, 2004). A juventude, desse modo, é considerada crucial para a continuidade social, uma vez que seria nesse momento que a integração do indivíduo, através da aquisição de elementos apropriados da cultura e da assunção de papeis adultos, se efetivaria ou não, trazendo consequências para o próprio jovem e para a conservação da coesão social. Em síntese, a ênfase da sociologia funcionalista se situa no processo de socialização vivenciado pelos jovens e nas possíveis disfunções que podem ocorrer neste percurso (Abramo, 1997).
No entanto, ao se patologizar a juventude e considerá-la apenas em suas dimensões de risco, conflito e problema social, não são reconhecidas suas capacidades, potencialidades e contribuições na construção da cultura (Quapper, 2012). Assim, a partir desta visão estigmatizante e reducionista (Krauskopf, 2004; Quapper, 2012), a juventude torna-se objeto de atenção quando representa uma ameaça de ruptura com o que está instituído socialmente. Tais ameaças de ruptura podem ser sentidas, por exemplo, quando movimentos juvenis propõem ou produzem mudanças na ordem social, quando há possibilidade de rompimento de uma geração com a transmissão da herança cultural, ou quando o jovem se desvia de um caminho em direção à integração social (Abramo, 1997; Cassab, C., 2011). A concepção de problema social relaciona-se também com a associação de jovens ao crescimento dos índices de violência, consumo e tráfico de drogas.
Nos anos 80, na América Latina, iniciou-se um movimento de responsabilização dos jovens por sua participação na violência urbana. Neste contexto, eles são considerados violentos e perigosos, principais protagonistas da insegurança nas cidades. Na Colômbia, por exemplo, os jovens são considerados até hoje como protagonistas centrais de atividades ilícitas e do conflito armado. Neste sentido, desenvolveram-se políticas sustentadas principalmente no controle, na correção e na prevenção (Cárdenas, 2005).
Enne (2010) fala de um «pânico moral» da sociedade em relação aos jovens, que ocorre quando as atitudes juvenis despertam sensações de insegurança e perigo, sendo duramente combatidas. Por vezes, as atitudes de resistência e de rompimento com o instituído são valorizadas, quando se vincula a ideia de juventude à de modernidade, como se o fato de ser jovem implicasse em não aceitar o instituído. Por outro lado, estas atitudes podem ser traduzidas como respostas infantis às demandas da vida adulta, sendo desqualificadas ou até ignoradas (Enne, 2010).
Na passagem do século XIX para o XX foram tecidas algumas concepções acerca da juventude que ainda hoje se fazem presentes. Esta começou a ser relacionada a um conjunto de emoções violentas, agressividade, instabilidade emocional e curiosidade sexual sem limites, considerada um estágio perigoso e frágil da vida dos sujeitos. Este suposto caráter problemático, libertino, contestador e desordeiro dos jovens, começou a ser temido e associado principalmente aos jovens operários. De forma geral, esse discurso do problema social acabou justificando e alimentando seu controle e vigilância. Se, por um lado, os filhos dos operários eram controlados, sobretudo, através do trabalho e da ação policial, por outro lado, as instituições de ensino exerciam o controle sobre os filhos dos burgueses (Cassab, C., 2011; Cassab, M. A. T., 2001).
A medicina contribuiu para alimentar a noção da juventude como momento problemático, por exemplo, através de teses médicas sobre a puberdade, que indicavam remédios para resolver ou atenuar seus problemas. Assim, a juventude considerada um problema torna-se campo de intervenção das ciências e das políticas públicas e objeto de controle, disciplinarização, vigilância e socialização. Supostas «verdades científicas» também tentaram embasar medidas higienistas dirigidas principalmente aos jovens pobres, em relação aos quais se dirige uma preocupação acentuada, que demandou a formulação de estratégias para a prevenção de possíveis desvios deste grupo (Cassab, C., 2011).
Parece haver um limite muito tênue entre os discursos da juventude como «momento de crise» e como «problema social». No entanto, podemos pensar em algumas situações em que estas representações, quando utilizadas, podem ser notadas em suas diferenças. Por exemplo, quando a desordem social é causada por jovens privilegiados economicamente, seus comportamentos podem acabar sendo justificados pelo argumento de que aqueles estariam passando por um momento difícil, de crise, transitório, que faz parte de sua condição de jovem ou adolescente e que provavelmente será superado com a chegada da idade adulta. No entanto, se o mesmo comportamento parte de um jovem pobre, negro, de periferia, este jovem provavelmente receberá um julgamento diferenciado e será classificado como «problema social». Assim, à mesma situação podem ser atribuídos valores e representações diferentes, conforme o grupo social a que pertencem os atores.
Neste sentido, quando consideramos os jovens de grupos populares, o discurso do problema social parece se ampliar. Estes frequentemente são objeto de maior vigilância, distanciamento e evitação, por serem considerados potencialmente perigosos (Coimbra & Nascimento, 2003; Cassab, M. A. T., 2001; Dimenstein, Zamora & Vilhena, 2004; Segura, 2009), sendo muitas vezes constrangidos em suas mobilidades na cidade.
A visão da juventude pobre como problema e ameaça à ordem social pode ser observada em uma pesquisa de Tamayo, Durán e Thayer (2014), realizada com jovens de grupos populares urbanos do Chile, que teve como objetivo identificar suas percepções em relação à forma como a imprensa escrita e digital retratava os jovens chilenos. De acordo com os participantes da pesquisa, haveria uma ênfase, por parte da imprensa, nos aspectos negativos da realidade dos setores populares, principalmente no que se referia aos jovens, os quais eram associados a um perfil delinquente e retratados como ameaça pública. Por outro lado, os aspectos positivos de seu cotidiano costumavam ser invisibilizados, enquanto aquelas situações que confirmariam certa irresponsabilidade e descontrole, consideradas um perigo para a sociedade, ganhavam enfoque. Esta espetacularização do negativo por parte da imprensa, de acordo com os participantes, seria uma resposta a uma demanda do próprio público por este tipo de notícia, que seria o que «venderia» mais. Além disso, os jovens identificaram que quando a juventude era mencionada de forma genérica pela imprensa, referia-se a características e condutas de um setor socioeconômico particular que não era o popular e eram mencionadas suas características neutras ou positivas (Tamayo, Durán & Thayer, 2014).
No Brasil, são observadas ações de «limpeza social», sobretudo quando nos referimos à relação entre o poder público e os jovens pobres, identificados como «classes perigosas», que precisam ser controladas e disciplinadas (Duarte, 2014). Este controle social muitas vezes se traduz no extermínio de muitos jovens negros, pobres, de periferia urbana.
As tentativas de controle e punição dos jovens identificados como problema social podem ser visualizadas em muitos países nas tentativas de redução da maioridade penal a nível jurídico (Urbieta, 2003). No Brasil, está em tramitação da Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional 171/93, que altera a maioridade penal de 18 para 16 anos. Nos discursos favoráveis à redução, que exigem mais punição e menos tolerância, considera-se, de forma superficial, que os adolescentes são responsáveis pelos altos índices de criminalidade. No entanto, de acordo com a nota técnica publicada pelo Núcleo de Estudos Sobre Criminalidade e Violência da Universidade Federal de Goiás, a participação de adolescentes nos crimes registrados no estado de Goiás é menor que a de adultos e os atos infracionais praticados pelos adolescentes são majoritariamente pequenos delitos contra o patrimônio e não contra a vida (Lima et al., 2015).
De acordo com Winton (2005), ocorre que, apesar da forte preocupação acadêmica e não-acadêmica em relação à violência juvenil, raramente esta preocupação se estende para considerar os efeitos da violência sobre os jovens e em que medida eles próprios são vitimados, o que em alguns contextos é solapado pela sua crescente criminalização. Na realidade, há uma associação superficial entre violência e juventude, pois o que se verifica é que esses jovens são as maiores vítimas (Sposito, 2003). De acordo com o Atlas da Violência 2019, pesquisa brasileira realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, das 65.602 pessoas assassinadas em 2017, 35.783 eram jovens de 15 a 29 anos. Neste mesmo ano, os homicídios foram apontados como a principal causa de mortes entre os jovens brasileiros (Cerqueira et al, 2019). Já o Mapa da Violência 2016, mostra que das 42.291 pessoas que morreram em 2014, no Brasil, em decorrência do disparo de algum tipo de arma de fogo, 25.255 (59,7%) eram jovens (Waiselfisz, 2016).
É importante ressaltar que a violência no Brasil vitimiza determinado, gênero cor e faixa etária. Segundo dados apresentados por Melo e Cano (2017), por exemplo, as principais vítimas da violência no Brasil são adolescentes negros de sexo masculino que são mortos com armas de fogo. Os adolescentes de sexo masculino possuem 13,52 mais risco de serem vítimas de homicídio do que as adolescentes e os negros têm 2,88 mais risco do que os brancos.
Outro dado importante, apresentado pelo Ministério da Justiça no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) é que o perfil da população que está presa no Brasil é predominantemente composto de jovens, negros e de baixa escolaridade. O levantamento, realizado em junho de 2016, revelou que 55% das pessoas privadas de liberdade eram jovens entre 18 e 29 anos, 64% das pessoas eram negras e 75% da população prisional brasileira não havia chegado a cursar o ensino médio (Infopen, 2016).
Neste sentido, observa-se a vivência de um paradoxo por estes jovens considerados «problema social»: se por um lado são lembrados pelo Estado como os principais alvos de ações que visam o controle dos fatores da desordem, determinadas por um poder que pretende mostrar sua infalível autoridade, por outro lado, são olvidados enquanto sujeitos de direitos (Duarte, 2014). Assim, enquanto as discussões acerca das dimensões políticas, econômicas e sociais que se relacionam com as demandas das juventudes possuem pouca visibilidade, predomina o argumento da necessidade de intervenção para o «controle» da violência (Malfitano, 2011).
5. Juventude e futuro
A partir do que foi apresentado até então, podemos observar a complexidade e as contradições dos discursos direcionados ao jovem, ora tratado como transgressor e delinquente, foco de pânico moral, ora como aquele é idealizado e que ocupa um papel modernizante da sociedade e depositário de esperanças em relação ao futuro. Assim, pode-se afirmar que, na sociedade atual, observa-se tanto «reclamações indignadas» quanto «esperanças entusiasmadas» em relação à juventude (Abramo, 2005). No entanto, estas concepções têm em comum o fato de não considerarem o jovem como agente do presente (Alvarado et al., 2009; Cassab, C., 2011).
No que se refere à associação entre juventude e futuro, Enne (2010) observa que, com a entrada desta categoria social em cena a partir do século XX, foram sendo colocadas sobre os jovens, representantes do espírito do tempo da modernidade, as esperanças de transformação e mudança histórica e a confiança de que «nada será como antes» (Enne, 2010). Assim, hoje são comuns as expressões de que, por exemplo, os jovens são o futuro da nação, da sociedade, do mundo, dentre outras.
A ideia da juventude associada a um plus vital é referida por Margulis e Urresti (2008), quando trazem a noção de moratória vital (conceito complementar ao de moratória social, o qual será referido no subitem seguinte), como uma peculiaridade desta em relação às outras gerações, que implica que os jovens sintam-se distantes da vulnerabilidade e da morte, a qual pertenceria ao mundo dos outros, às gerações que os precedem no tempo. Neste sentido, a juventude seria um período em que se possui um excedente temporal, um capital temporal. De acordo com os autores, esse fato seria dado de forma geral, em um primeiro momento, e pode cumprir-se ou não posteriormente, uma vez que surgem diferenças sociais e culturais no modo de ser jovem, dependendo de cada classe (Margulis & Urresti, 2008).
Dentro desta mesma perspectiva, a associação entre jovens e futuro se vincula de certa forma ao fato da juventude ser considerada um período de maturação biológica que concederia ao sujeito este plus vital, que lhe confere uma potência para agir no sentido de impulsionar mudanças e renovações. Neste sentido, os jovens são associados a certo protagonismo como atores políticos ou como agentes de inconformidade (Cárdenas, 2005). No entanto, podemos questionar em que medida o jovem hoje é de fato reconhecido como ator social e como sujeito que participa no aqui e agora, de forma politizada, ou se esse papel é exclusivo dos adultos, enquanto o jovem é pensado apenas enquanto vir a ser.
A literatura mostra que a conceituação do jovem como um vir a ser, na maioria das vezes implica que o mesmo não exerça seus direitos como jovem no hoje, devido à sua condição de promessa para o futuro (Oliveira & Trancoso, 2014). No estudo de Menandro, Trindade e Almeida (2003), por exemplo, se destaca em matérias jornalísticas a representação da adolescência/juventude como o futuro da nação, o que se relaciona com a ideia de que cabe aos jovens, a partir de seu amadurecimento e preparação, serem responsáveis, no futuro, por dar seguimento ao que já foi construído pela sociedade até então. Essa preparação se daria através da educação escolar e familiar, que conduziria a uma adaptação do jovem aos valores e normas sociais. Esse discurso adia as expectativas dos jovens para quando chegarem à idade adulta (Menandro, Trindade & Almeida, 2003).
Poderíamos tensionar este discurso da preparação e do jovem enquanto vir a ser, considerando as diversas situações mais recentes em que jovens estudantes têm sido relevantes protagonistas de lutas e manifestações por mudanças sociais, que inclusive envolvem embates intergeracionais. Como exemplos do contexto brasileiro, podemos citar o «Movimento passe livre» e a «Ocupação das escolas». O Movimento Passe Livre (MPL) é um movimento social, liderado por jovens, que, em sua origem, reivindicava a gratuidade no transporte público para estudantes e, atualmente, luta pela tarifa zero para todos. O MPL levanta o debate em torno da questão do direito à cidade e da mobilidade urbana, considerando que ela passa necessariamente por uma questão de oferta de transporte coletivo pago indiretamente. Trata-se de uma disputa política pelos recursos do Estado, uma luta dos jovens em termos de uma «repartição de poder», num movimento de contestação a uma ordem gerontocrática.
A ocupação das escolas foi um movimento importante ocorrido em 2016 em várias cidades do Brasil, que agregou jovens estudantes secundaristas, na luta por uma escola e uma educação de qualidade. Neste movimento, formaram-se alianças entre os jovens e alguns adultos, como professores e pessoas da comunidade, o que mostra que não se tratou apenas de uma luta intergeracional, mas dos jovens, juntamente com alguns segmentos dos mais velhos, contra o establishment político.
Soares (2000) questiona quais seriam as motivações implícitas nas afirmações de que «os jovens são o futuro». O autor acredita que, na realidade, o que se estaria querendo afirmar é que os jovens não possuem alternativas para o presente, principalmente quando se observam as dificuldades governamentais na garantia de educação, saúde e emprego (Soares, 2000). De forma semelhante ao paradoxo já apontado entre o enaltecimento da juventude e a precárias condições sociais oferecidas aos jovens, observa-se uma paradoxal relação entre o discurso futurista sobre estes, de um lado e, por outro lado, a atual inércia político operacional em relação à constituição de condições sociais concretas, que possam ser oferecidas aos jovens como garantias no hoje (Oliveira & Trancoso, 2014).
Cárdenas (2005) afirma que, na realidade, os jovens depositários das esperanças de transformação e de mudança social seriam aqueles julgados capazes de reproduzir o ideal de produção e consumo vigente e contribuir para a manutenção do status quo (Cárdenas, 2005). Aqueles que se desviam desse padrão muitas vezes não são associados ao futuro, tampouco possuem garantias de futuro. Ao contrário, por vezes, ser jovem, especialmente pobre e negro, torna-se o estigma que legitima as ações da chamada «limpeza social», marcada pela violência.
Quando nos deparamos com a ideia de que os jovens são agentes propiciadores de conflito e violência e, consequentemente, considera-se sua proximidade com o risco e a morte, ocorre que pode haver sua associação com a ideia de «não-futuro» (Cárdenas, 2005). Considerando-se a realidade precária, o risco e a incerteza quanto a «estar vivo amanhã» vivenciados por muitos jovens, podemos inclusive questionar sobre a pertinência da afirmação de que os jovens, de forma geral, possuem um plus vital ou excedente temporal. Neste sentido, considerando que atualmente está em curso a mais profunda transição demográfica de nossa história, diante do significativo envelhecimento populacional e das altas taxas de mortalidade precoce de jovens em consequência da violência, cujos dados foram apresentados no subitem anterior (Cerqueira et al., 2019), podemos questionar sobre as implicações e consequências deste cenário, sobre o desenvolvimento econômico e social e, de forma mais ampla, sobre o futuro da nação.
Assim, contrariando a lógica que associa intimamente juventude e futuro, muitos estudos vêm observando que as vivências dos jovens, principalmente os que estão imersos em realidades precárias, estão cada vez mais focadas no agora, já que o risco, a incerteza e a falta de garantias tornam difícil um planejamento a longo prazo em relação ao que se deseja (Augusto, 2007; Cárdenas, 2005; Savegnago, 2018; Soares, 2000).
6. Juventude e moratória
A representação do jovem como «futuro» pode estar intimamente associada à noção de moratória, uma vez que esta se baseia na ideia de que os jovens são inexperientes, carecem de maturidade social e atravessam um período de transição entre a infância e a adultez, que deve ser preparatório para o futuro. Ou seja, o jovem permaneceria em uma espécie de «limbo» até tornar-se adulto (Krauskopf, 2004).
O termo «moratória» foi cunhado por Erik Erikson, mas continua sendo referenciado e problematizado por vários autores mais atuais (Abramo, 2005; Alvarado et al., 2009; Cassab, C., 2011; Dayrell & Carrano, 2002; Groppo, 2010; Krauskopf, 2004; Margulis & Urresti, 1998; 2008). A moratória pode ser compreendida como um momento de experimentação, marcado pelo hedonismo e pela irresponsabilidade (Dayrell & Carrano, 2002), que implica que o jovem ocupe um lugar do ócio «privilegiado» (Alvarado et al., 2009).
Para Abramo (2005), a moratória implica em uma subordinação ao adulto e um adiamento dos deveres e direitos de produção, reprodução e participação, dimensões estas que serão exercidas no futuro, sendo a juventude o momento dedicado exclusivamente à formação para o exercício destas dimensões. Conforme Krauskopf (2004), a ideia de moratória psicossocial se instaurou nas representações sociais como uma estratégia necessária no período de preparação juvenil para a adultidade. Foi concebida a partir de uma sequência regular de eventos e de uma imaginária homogeneidade social, com características mais próximas da classe média.
Desde o nascimento do conceito de juventude, na sociedade moderna ocidental, a moratória parecia ser uma experiência restrita aos filhos das classes médias e altas, enquanto muitos jovens das classes populares eram integrados ao setor produtivo desde a infância (Abramo, 2005; Amaya, 2002). Com a industrialização, os jovens da burguesia eram liberados do trabalho a fim de dedicarem-se ao estudo e ao preparo para uma profissão. Castro (2011) afirma que
seja na França, na Alemanha ou na Inglaterra do século XIX, a reclusão dos jovens em instituições escolares serviu à reprodução social das elites, apostando na preparação intelectual, moral e emocional daqueles jovens que ocupariam lugares-chaves nas sociedades burguesas emergentes baseadas no esforço, mérito, concorrência e cultivo de si. (p. 302)
No entanto, a possibilidade de postergar as responsabilidades da vida adulta não era comum aos jovens de todas as classes sociais. Os filhos dos trabalhadores eram inseridos precocemente nas atividades produtivas, mantinham-se afastados da escola e por vezes eram vistos como delinquentes, não desfrutando dos mesmos privilégios que tinham os jovens da burguesia (Cassab, C., 2011; Cassab, M. A. T., 2001). Assim, pode-se perceber já na análise das diferenças entre a juventude burguesa e a operária o fato de a moratória não ser uma condição universal dos jovens.
É importante atentarmos para o fato de que a situação concreta dos jovens brasileiros hoje é diferente do que aparece em muitas definições teóricas e referências sobre o padrão ideal de juventude, nas quais o conteúdo da moratória é definido pelas possibilidades de o jovem se manter distante das obrigações da inserção produtiva e voltado exclusivamente para a formação escolar (Abramo, 2005).
Se considerarmos, por exemplo, o jovem pobre que desde cedo trabalha para ajudar no sustento da família ou aquele que muitas vezes é o único responsável pelo sustento familiar, podemos afirmar que este jovem vivencia uma moratória? Grande parte dos jovens latino-americanos que vive em situação de exclusão são invisibilizados e enfrentam uma urgência psicossocial em relação ao cumprimento de responsabilidades supostamente adultas e, ao mesmo tempo, uma ausência de oportunidades. Essa demanda se intensifica a partir da puberdade, quando parece haver uma legitimação da responsabilidade dos jovens pela busca de subsistência e por contribuir com o sustento de suas famílias (Margulis & Urresti, 2008; Krauskopf, 2004).
Além disso, observa-se que, para grande parte dos jovens pobres brasileiros, o trabalho é mais atrativo do que a escolarização, sendo revestido de valor, mesmo nos casos em que suas condições e natureza sejam precárias. Seu valor reside no que ele pode oferecer a partir da renda obtida, como a conquista de certa autonomia em relação aos gastos e às escolhas que podem ser feitas e as possíveis experiências de consumo. Por outro lado, na visão do jovem, a escola pode não oferecer, a curto prazo, as mesmas perspectivas e os ganhos que o trabalho teria a oferecer (Arpini, 2003).
Ao dar preferência às atividades ocupacionais em detrimento da escola, o jovem pobre parece não aceitar a espera que a formação escolar prevê, uma vez que esta espera não significa que haverá um retorno satisfatório no amanhã e pode se constituir em um prolongamento de uma situação difícil de sobrevivência. Assim, ao invés de apostar em algo a longo prazo que não oferece garantias, o jovem pode acabar apostando naquilo que talvez lhe dê um retorno imediato, apesar de precário.
Ao analisarmos a questão do exercício da sexualidade e sua relação com a moratória dos jovens, destaca-se que hoje a juventude não pode mais ser considerada um período de latência pela desvinculação entre o desenvolvimento fisiológico da capacidade de reprodução e a anuência sociocultural para o exercício da sexualidade, mas como um momento em que ocorre a iniciação e o desenvolvimento de uma sexualidade ativa. No entanto, apesar destas mudanças, ainda existem diferenças no nível de aceitação da sexualidade juvenil, sobretudo no que se refere à questão de gênero (Abramo, 2005).
Abramo (2005) afirma que a moratória juvenil hoje perdeu um pouco do seu sentido de suspensão e espera para poder realizar as coisas no futuro, na adultidade, e agregou um sentido de possibilidade de vivência e experimentação diferenciada. Ou seja, o jovem vivencia todas as esferas do mundo adulto, mas de forma singular, com menos compromissos e encargos, com vínculos menos definidos, e desfrutando das coisas com mais alegria e liberdade, uma vez que possui maior disponibilidade e vigor e menos constrangimentos, quando comparados com os adultos (Abramo, 2005). Mas seria possível afirmar que os jovens possuem menos constrangimentos quando comparados aos adultos? Talvez não possamos afirmar que o jovem vivencie todas as esferas do mundo adulto de forma singular, pois a esfera da participação social, da tomada de decisões não é sempre experienciada de forma livre de constrangimentos, principalmente quando consideramos os casos em que os jovens possuem pouca possibilidade de participação e exercício da cidadania, ou quando esse exercício não é reconhecido, ou ainda quando o próprio sujeito jovem não é reconhecido socialmente.
7. Considerações finais
A partir das reflexões acerca dos discursos sociais sobre os jovens e a juventude, podemos afirmar que, apesar de tais discursos não serem passíveis de generalização, já que por vezes dirigem-se preferencialmente a jovens de determinados grupos sociais e geralmente enfocam alguns aspectos em detrimento de outros, ressalta-se o relevante papel que ocupam na constituição da situação juvenil, alinhados e/ou em tensão com as vivências reais dos jovens.
Quando a juventude é apresentada como «ideal de vida», esse ideal é ligado às possibilidades de consumo e desfrute da condição privilegiada de «ser jovem» e à imagem do jovem como agente revitalizador, que contém um potencial de melhora para o amanhã da sociedade. A juventude como ideal de vida, quando apresentada como um espaço-tempo de fruição absoluta, com condições para se usufruir tudo o que se deseja, não corresponde à juventude pobre. Por outro lado, esse ideal de vida, esse momento a ser usufruído, também é assimilado pelos jovens das classes populares que não têm muitas condições objetivas de fruição, os quais também apresentam o discurso de «aproveitar a vida», quando afirmam, por exemplo, «estar de saco cheio e não querer estudar», ou «desejar estar em outros espaços, que não a escola, aproveitando a condição de ser jovem» (Savegnago, 2018).
O discurso da «juventude como crise» parece responder à necessidade de se enquadrar um conjunto de características fixas, consideradas naturalmente constituintes do desenvolvimento humano, desconsiderando que tais manifestações podem estar presentes em outros períodos da vida, não sendo exclusivas da adolescência ou da juventude. A noção de crise, na contemporaneidade, parece ocupar um lugar estrutural da vida e da constituição do sujeito. Por exemplo, o sujeito adulto que perde o emprego pode entrar em uma crise. Hoje esta questão da crise, para além do sentido de passagem para assumir um outro status na sociedade, é ampliada por outras questões, como a do desemprego estrutural, das guerras, das migrações (crises imprevisíveis). Além disso, a questão da crise não pode ser olhada apenas a partir de um viés negativo, uma vez que pode possibilitar descobertas, criações e reinvenções que são importantes na produção da subjetividade juvenil.
Já o discurso da juventude como «problema social» parece dirigir-se principalmente aos jovens pobres urbanos, responsabilizados pela violência nas cidades e, por isso, vítimas do controle social e, por vezes, do extermínio. Este discurso permeia, por exemplo, as ações de vigilância, controle e contenção exercidos sobre as mobilidades dos jovens pobres, principalmente quando estes são negros e moradores de favelas, que são cada vez mais identificados a partir de estereótipos que os enquadram como potencialmente perigosos.
Com relação ao discurso que considera a juventude um vir a ser e depositária de esperanças em relação ao futuro, parece desconsiderar-se o jovem como agente do hoje, no aqui e no agora. Além disso, a associação entre juventude e futuro parece inadequada quando consideramos a situação precária de muitos jovens, marcada pela incerteza e pela falta de garantias, que nubla seus horizontes.
Em relação ao discurso que associa a juventude à moratória, pode-se inferir que os jovens pobres não vivenciam uma moratória social, no sentido de um afastamento das obrigações ocupacionais, mas que, por outro lado, experienciam uma moratória no sentido de não terem suas vozes e ações reconhecidas no presente pela sociedade. Além disso, no contexto contemporâneo de prolongamento da vida, mudanças aceleradas, novos referentes temporais e um curso de vida cada vez menos linear, pode-se afirmar que mudaram as condições que sustentavam o conceito de moratória originalmente descrito por Erikson.
A partir do exposto, destaca-se a importância de se estabelecer um olhar aberto em relação à juventude, que se refaz continuamente, e de se evitar enquadrar as questões que tocam esta noção em uma única chave de respostas, submetendo-as a constante análise, no sentido de que não sejam gerados saberes acabados e totalizadores. Talvez estes discursos, considerados de forma acrítica, possam nublar nosso olhar para enxergar de maneira clara as formas como os jovens colocam-se diante do mundo e constroem suas experiências. Assim, faz-se necessário problematizá-los, buscar não naturalizá-los, entender como se constituem, quem os utiliza e a quais jovens determinados discursos são preferencialmente direcionados, uma vez que é notável que eles não são atribuídos a todos os jovens da mesma maneira e que alguns têm seus destinatários privilegiados.
Também cabe salientar que tais discursos constituem condições de subjetivação dos jovens, uma vez que se encontram subjacentes em suas vivências, na forma como os jovens significam suas ações e referem a si mesmos e na constituição do que eles desejam para suas vidas. Estes discursos também são influenciados pelas (e se refletem nas) práticas sociais dos (e dirigidas aos) jovens -podendo influenciar na elaboração de políticas públicas, por exemplo-, daí a importância de analisá-los e problematizá-los
Resumo:
1. Introdução
2. Juventude como ideal de vida
3. Juventude como momento de crise
4. Juventude como problema social
5. Juventude e futuro
6. Juventude e moratória
7. Considerações finais